A maior parte dos brasileiros (61%) pensa que o governo nacional deveria ter mais políticas e ações para migrantes em situação vulnerável. Essa é uma das principais conclusões da pesquisa inédita “Opiniões sobre Migrações”, realizada pelo Datafolha junto à Conectas.
Além de defender mais políticas públicas para migrantes, 39% das pessoas entrevistadas acreditam que o país deveria receber mais pessoas de outros países e a maioria (70%) pensa que migrantes devem ter acesso a serviços públicos como saúde e educação, além de benefícios sociais e previdência. Os brasileiros responderam que a vinda de migrantes traz mais benefícios que problemas, sobretudo para a cultura do país, e concordaram que nenhum ser humano é ilegal e que a deportação deve ocorrer apenas em casos previstos em lei e com direito à defesa.
Contudo, a pesquisa também revela que a população brasileira reconhece que migrantes de países pobres têm mais chances de passar por más experiências e que o fator que mais pesa nessa acolhida é a raça e cor da pessoa. Os resultados da pesquisa revelam as duas faces da migração no Brasil, avalia a coordenadora do Programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas, a advogada Raissa Belintani: a postura humanitária do país, por um lado, e a persistência da discriminação e da xenofobia, por outro.
“O Brasil, em geral, tem uma visão mais humanitária. Mas, ao mesmo tempo, quando aprofundamos algumas questões, podemos ver divergências e, no dia a dia, ainda muita xenofobia. Obviamente, nossa política não é tão restritiva nos direitos quanto nos EUA e na Europa. Temos uma boa legislação, por ser pautada nos direitos humanos, apesar de ela ainda precisar de muitos avanços e melhorias”, pontua a especialista.
Em janeiro de 2023, o Brasil retornou ao Pacto Global para Migração, compromisso assinado por 164 países que lista eixos para gerenciar a migração com ênfase nos direitos humanos, como coleta e disponibilização mais precisa de dados sobre fluxos migratórios e garantia de serviços básicos a todos os migrantes. O país havia deixado o acordo em 2019, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob a afirmação de que ele ameaçaria a soberania nacional. Além do retorno ao Pacto, a nova gestão do governo federal está elaborando a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia e propõe ouvir a sociedade civil em uma consulta pública.
Mais políticas para mais migrantes
A percepção de que o governo deveria ter mais políticas para receber migrantes predomina em todos os grupos que responderam à pesquisa: homens e mulheres, pessoas com todos os níveis de escolaridade e entrevistados das cinco regiões do país. A parcela que defende mais ação do governo para auxiliar os migrantes é ainda maior na faixa etária de 60 anos ou mais, entre pessoas da região Sul, para moradores de capitais e regiões metropolitanas e entre os que ganham acima de cinco salários mínimos.
Apesar de apoiarem mais ações, 31% avaliam que políticas do governo brasileiro para migrantes em situação vulnerável são ótimas ou boas, contra 18% que disseram que são ruins ou péssimas.
Hoje, a principal baliza de políticas públicas para migrantes é a Lei de Migração, sancionada em 2017. Especialistas na área a consideram um avanço em relação à legislação anterior, o Estatuto do Estrangeiro, lei dos anos 1980 que trazia marcas de autoritarismo do regime militar. Entretanto, a pandemia e uma série de medidas do governo Bolsonaro fragilizaram a Lei de Migração e o governo Lula deve buscar aprimorar as normas que a regulamentam, explica Belintani.
“A lei atual tem princípios muito bons, mas precisamos de um direcionamento mais objetivo para eles. O próprio decreto que regulamenta a lei (9.199/2017) trouxe várias questões que a contradizem. Ele traz, por exemplo, previsão de prisão de migrantes por sua condição migratória, sendo que a lei fala em não criminalização. Ele também traz palavras como ‘clandestino’ e ‘estrangeiro’, que abolimos na lei e são muito xenofóbicas. E, principalmente, deixa muitas questões abertas à discricionariedade dos agentes que aplicarão a legislação”, pontua.
Em fevereiro de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) lançou um Grupo de Trabalho para debater a criação da política migratória no Brasil, com participação de diversas entidades da sociedade civil, inclusive da Conectas, e de pessoas migrantes. Entre os desafios que o país precisa superar, sublinham especialistas no tema, estão construir uma política pública específica para indígenas em deslocamento, para quem o conceito de fronteira pode ser diferente do que é previsto em leis, e uma padronização da concessão de vistos nas diferentes embaixadas do Brasil.
O governo Bolsonaro também deixou um rastro de dificuldades. “Houve uma piora absurda, porque foram editadas várias portarias, principalmente na pandemia, que fecharam fronteiras e puniam pessoas que tentassem entrar com a inabilitação do pedido de refúgio, por exemplo. Ainda antes da pandemia, uma portaria do então ministro Sérgio Moro falava na deportação de pessoas consideradas perigosas e era muito subjetiva, bastava a suspeita de que teria cometido um crime para ser deportada, o que vai contra a presunção de inocência”, descreve a advogada.
Maioria acredita que Brasil tem mais migrantes do que a realidade
A pesquisa revela que os brasileiros acreditam que existam mais migrantes no Brasil do que efetivamente há. Para a maioria dos entrevistados (56%), mais de 10% da população do país é formada por migrantes. Segundo dados da Polícia Federal, contudo, a estimativa é que até 1,2% das pessoas que vivem no Brasil seja migrante. Para 65% dos entrevistados, as cidades onde vivem recebem muitas pessoas de outros países para morar, resposta que foi ainda mais frequente no grupo de pessoas da Região Sul. Cerca de quatro a cada dez entrevistados disseram conviver no dia a dia com pessoas que vieram de outros países.
A migração pode contribuir para aprimorar serviços públicos nas regiões onde é mais intensa, na visão do secretário executivo da Cáritas Diocesana de Roraima, Ronildo Rodrigues. A organização mantém projetos de acolhimento a migrantes, especialmente venezuelanos, no Norte do país.
Um diagnóstico publicado em 2022 pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e pela Pólis Pesquisa demonstra que pouco mais da metade das pessoas refugiadas e migrantes da Venezuela têm Ensino Médio e 25,6% têm formação técnica ou superior em áreas como educação, administração e engenharia. Ainda assim, ganham menos, em média, que os brasileiros. O estudo foca em Manaus, no Amazonas, mas Rodrigues destaca que Roraima também se beneficia dos migrantes. “O estado de Roraima ganhou mão de obra técnica. Em segundo lugar, há a quantidade de empregos que a migração gerou na rede hoteleira, devido à quantidade de pessoas que, por causa da migração, vêm fazer reportagens, são de agências internacionais e outras organizações. Fora os militares, que se revezam semestralmente aqui e consomem no estado”, pontua.
Um estudo publicado em 2020 pela Fundação Getulio Vargas (FGV) comprova que a economia roraimense ganhou com a migração: o comércio varejista e as exportações aumentaram a arrecadação dos cofres públicos com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em 25% entre o final de 2018 e o início de 2019, por exemplo.
Brasileiros percebem aumento da migração
Na visão dos brasileiros, a quantidade de migrantes tem aumentado nos últimos anos. Oito em cada dez entrevistados acreditam que o número cresceu, sendo que quase cinco em cada dez pensam que a quantidade de migrantes aumentou muito nos últimos cinco anos. Em comparação, apenas 4% pensam que a migração diminuiu.
Segundo dados dos relatórios anuais de migração do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a quantidade de pedidos de refúgio no Brasil teve um crescimento expressivo a partir de 2018. Para se ter uma ideia, em 2020, 26 mil pessoas tiveram sua situação de refúgio reconhecida no país; antes de 2018, esse número não passava de 5 mil anualmente.
Mesmo com a percepção de que o número de migrantes teria aumentado, o brasileiro ainda acredita que o país deva receber mais pessoas. Para 39% dos entrevistados, o país deveria receber mais migrantes de outros países, contra 24% que pensam que a quantidade deveria ser reduzida. Já 26% pensam que o país deveria receber o mesmo número de migrantes, sem aumento ou redução. A porcentagem de entrevistados que defende que o Brasil deixe de receber migrantes é minoritária, de apenas 5%.
A maioria das pessoas que responderam à pesquisa (66%) acredita que os migrantes nesse período vieram sobretudo de países pobres. Quando perguntados sobre a nacionalidade desses migrantes, a resposta mais frequente foi de venezuelanos (39%). Após a Venezuela, os entrevistados indicaram que os migrantes têm vindo da Angola, Bolívia, África do Sul e do Haiti.
Nenhum ser humano é ilegal, concorda maioria dos brasileiros
“Todos os migrantes devem ser acolhidos, independente da raça, religião, gênero, idioma ou nacionalidade” — oito em cada dez brasileiros concordam com essa frase, de acordo com a pesquisa “Opiniões sobre migrações”. O apoio total a essa ideia é ainda maior entre as mulheres do que homens, e maior entre pessoas com escolaridade até o Ensino Fundamental do que em relação a quem estudou mais anos.
Já sete em cada dez pessoas concordam que migrantes devem ter os mesmos direitos e deveres dos brasileiros e ter acesso a serviços públicos como saúde e educação, além de benefícios sociais como o Renda Brasil e a previdência. A ideia também tem mais apoio entre mulheres e pessoas com Ensino Fundamental.
Também são sete em cada dez que concordam que, além de acolher pessoas que buscam proteção ou melhores condições de vida no nosso país, o Brasil precisa criar políticas públicas para a inserção de migrantes em nossa sociedade. E uma porcentagem parecida (75%) pensa que, se um migrante trabalha, paga impostos e tem residência fixa no Brasil, deveria ter direito ao voto. E a maior parte dos entrevistados (68%) concorda com a frase: “nenhum ser humano é ilegal”.
Quase sete em cada dez entrevistados (69%) concordam totalmente ou em parte que fechar fronteiras não impede a migração, mas apenas submete as pessoas migrantes a situações perigosas e mais vulneráveis. Uma porcentagem um pouco maior (75%) disse que deportações somente deveriam ocorrer nas formas previstas em lei, devendo-se respeitar o direito à defesa. Seis em cada dez (59%) concordam que impedir o acesso ao refúgio é uma medida ilegal, que mancha a reputação internacional do Brasil.
A pesquisa do Datafolha e da Conectas entrevistou mil brasileiros com 18 anos ou mais em todo o território nacional de julho a agosto de 2022. A margem de erro da pesquisa é de 3% para mais ou menos.
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